Passeando na Avenida
Quem diria que o formato do folhetim surgido na França no início do Século XIX seria hoje dominante na teledramaturgia brasileira? Pois é... Passeio por estas linhas descobrindo novos caminhos. Não sou (ou, pelo menos, não era) um amante do folhetim, seja ele literário ou televisivo. Sempre fui "antenado" no cinema, séries de TV e outros produtos audiovisuais que, em sua maioria, tem início, meio e fim em cada episódio. No entanto, no ano de 2012, me deparei todo dia em frente à televisão, às 21 horas, para assistir Avenida Brasil, a telenovela de João Emanuel Carneiro, exibida na Rede Globo, e que ontem faturou inúmeros prêmios no prêmio Melhores do Ano.
O exercício tecido nestas breves palavras é o de analisar a linguagem da telenovela Avenida Brasil. As ideias e textos propostos no curso de Avenida Brasil dialogam e motivam olhares mais abrangentes, que entrecruzam reflexões sobre cultura, teledramaturgia, contexto da obra, estética, entre outras.
O discurso da telenovela é produto dos sujeitos envolvidos, dentro e fora de cena, da recepção, da inscrição desses seres na história e nas condições que a linguagem foi gerada. A leitura desse discurso implica um olhar que alcance além do dito, além da cena: um olhar capaz de articular os elementos internos e externos à linguagem, na e fora de cena. O discurso é o ponto de articulação entre os fenômenos linguísticos e os sócio-históricos.
O estudo discursivo, portanto, leva em conta não só o que é dito em determinada cena/contexto, mas as relações entre esse dito com o que foi dito antes, com as cenas em que ele foi proferido e, até mesmo com o não dito. Talvez esse tenha sido um dos grandes méritos de João Emanuel Carneiro, pois ele conseguiu estabelecer um diálogo claro, uma parceria jamais alcançada antes com o público. Percebe-se isso, por exemplo, nos abraços que a personagem Carminha (Adriana Esteves), dava na Muricy (Eliane Giardini), mãe de Tufão (Murilo Benício). A personagem interpretada por Adriane Esteves mostrava ao público o desprazer em ter contato com aquela família, sua máscara facial nos dizia o que não precisava aparecer em palavras.
Ao produzir o discurso de sua telenovela, o criador, João Emanuel Carneiro, expressa sua consciência livre para interferências de outras fontes. Nela há o substrato de leituras sobre folhetim, romances, seriados americanos, filmes Hollywoodianos, cinema brasileiro entre outros. Seu discurso é resultado de discursos que lhe precedem, que foram por ele assimilados/interiorizados em função da exposição social, cultural e histórica a que todos, querendo ou não, estão submetidos e a partir da qual são constituídas as representações discursivas sobre o mundo.
Para entender os discursos que ajudaram João Emanuel Carneiro a construir sua linguagem, podemos caminhar por um rápido histórico de sua carreira que passeou por diferentes searas. Com quatorze anos João Emanuel começou a colaborar com Ziraldo, roteirizando algumas histórias em quadrinhos. Seis anos mais tarde, dirigiu e ganhou prêmios como roteirista pelo curta-metragem Zero a Zero, com participação do ator Marcelo Serrado, filme esse que muito se assemelhava aos moldes de seriado. Depois disso, João Emanuel assina roteiro de muitas obras de sucesso: (i) Castelo Ra-Tim-Bum (1994-1997), coordenado por Cão Hambúrguer; (ii) Deus é Brasileiro (2003), de Carlos Diegues; (iii) parceria com Walter Salles nos filmes: (iii.1) Central do Brasil (1998) e (iii.2) O Primeiro Dia (1997); (iv) na minissérie Os Maias (2001), baseada na obra de Eça de Queiroz. Não é o intuito aqui descrever o currículo de João Emanuel, mas ao passar os olhos por essas obras observamos que ele passeou por variados temas: programa infantil, filme sobre ditadura, filme on the road, seriado de época, literatura, minissérie no nordeste e comédia. No entanto, é em 2004 que João Emanuel assina sua primeira novela: Da cor do Pecado. Dois anos mais tarde, escreve Cobras e Lagartos, alcançando novamente sucesso. Em 2008, escreveu sua primeira novela do horário mais nobre da Rede Globo, A Favorita.
O Naturalismo é um dos pontos chave dessa novela. Vejamos: a linha naturalista é um movimento que ocorre em outros segmentos do audiovisual; na telenovela começa com Beto Rockfeller, em 1968, na TV Tupi, que se utilizou de diálogos coloquiais, imitando exatamente como o povo falava no dia a dia. Não se pode negar que Avenida Brasil veio dessa escola. Os diálogos fluíam naturalmente.
E não foi apenas nos diálogos que se percebeu o naturalismo; os gestos e as atitudes naturais de cada personagem ajudaram a delinear melhor o papel de cada uma na trama, sem que, para isso, fosse necessário usar uma palavra. Falar de um vestido feio, reclamar de uma empregada que não consegue abrir uma garrafa de vinho, esbarrar em um personagem e continuar a cena – assim foi Avenida Brasil. Essa atmosfera naturalista criou uma verossimilhança com a vida real, pois ao ver a novela, muitos se reconheceram na tela. É possível ter aquela atitude, é possível comer daquela maneira, ter um bar perto de casa parecido com o do Silas, ter um salão igual ao da Monalisa.
Em Avenida Brasil percebe-se também a referencia de João Emanuel ao mestre do suspense. Quando Genésio (Tony Ramos), o pai de Nina (Débora Falabella), é atropelado por Tufão, antes de morrer sussurra no ouvido do ex-jogador de forma muito semelhante a que o agente americano Ben faz com o personagem interpretado por James Stewart no filme O homem que sabia demais de Alfred Hitchcock. E esse foi só o começo. Quando Nina domina a casa e chantageia Carminha com fotos dela com seu amante Maxwell (Marcelo Novaz), a luz sombria lembrava filmes da gramática do horror; a personagem de Nina andava em uma moto e foi enterrada por Carminha assim como a personagem interpretada por Uma Thurman no filme de Quentin Tarantino Kill Bill; as cenas no lixão tinham a linguagem de documentários como Estamira, de Marcos Prado, dentre outros exemplos.
Uma das grandes novidades, se não a maior que João Emanuel Carneiro trouxe, foi ajustar para telenovelas o ritmo dos seriados americanos. Avenida Brasil, como todo folhetim, sempre terminava com um gancho, mas no capítulo seguinte esse gancho se resolvia e criava-se outro. Os episódios completavam a ação que era proposta e, para o final do capítulo, outras ações eram propostas para o próximo. Na avenida principal tínhamos a trama de vingança de Nina sobre a Carminha, mas nos entremeios dessa trama houve várias bifurcações como se fosse seriados como, por exemplo: o amor de Darkson por Tersália; a traição de Leleco e Muricy; o caso de Nina e Maxwell; a história em comum de Nina e Jorginho; Tufão se apaixonando por Nina; a história de Adalto; Cadinho e suas três mulheres entre outros.
Um último ponto importante e inédito na TV, foi o fato de o núcleo principal da novela estar todo no subúrbio, cabendo à Zona Sul estrelar a comédia. Mesmo assim, no final, todos os personagens ficaram no mesmo espaço geográfico, o Bairro do Divino.
A sensação no dia do último capítulo de Avenida Brasil foi a de estar vivendo um momento histórico. Antes da apresentação do capítulo que finalizou a trama, o Jornal Nacional mostrou as ruas dos grandes centros do País vazias, pessoas em bares se reunindo para ver a resolução da trama de João Emanuel, redes sociais bombando durante a exibição do último capítulo, com cada um dando sua opinião sobre o que acontecia.
João Emanuel talvez tenha realizado sua obra prima, daquelas mais autorais possíveis em que se reflete na tela todas as facetas, todas as fontes que você bebeu para criar a sua própria fonte. No país que reconhecidamente produz as melhores telenovelas do mundo, Avenida Brasil certamente ficará na memória como um novo caminho para o gênero.
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